Portos clandestinos mantêm atividades febris, principalmente à noite e nas primeiras horas da manhã / Zeca Ribeiro |
No lado boliviano do rio Guaporé, próximo ao município rondoniense de
Pimenteiras, uma cruz chama a atenção dos navegantes. Fincada num
pequeno promontório às margens do rio, a cruz é um símbolo do abandono
da fronteira Brasil-Bolívia, corredor de acesso fácil aos dois países.
Um território aberto para o tráfico e o contrabando. A cruz homenageia o
policial federal Roberto Simões Mentzinger, morto com um tiro naquele
local pelo boliviano José Pereira Melgar em 1999. Na versão oficial da
PF, o agente investigava uma quadrilha de traficantes que enviava
cocaína da fronteira para São Paulo. Abandonado, o corpo do agente
federal foi devorado por onças.
Pouca coisa mudou na fronteira com o decorrer dos anos. E isso faz
desse pedaço do Brasil amazônico um território onde seguir a lei é um
exercício complexo. É o que ocorre, por exemplo, entre os municípios de
Guajará-Mirim, em Rondônia e Guayaramerin, na Bolívia. Separadas apenas
pelo rio Mamoré, as duas cidades sentem os efeitos da crise econômica
mundial.
A extensão da fronteira do Estado de Rondônia com a república da
Bolívia é de 1.342 quilômetros. Os municípios rondonienses localizados
na faixa da fronteira boliviana são Guajará-Mirim, Nova Mamoré, Costa
Marques, Alta Floresta do Oeste, São Francisco do Guaporé, Alto Alegre
dos Parecis, Pimenteiras do Oeste e Cabixi.
Outrora repleta de lojas com os mais diversos artigos e bugigangas
eletrônicas, Guayaramerin é um pálido retrato do que já foi. A Avenida
General Frederic Román, principal via comercial da cidade, sempre
repleta de brasileiros, agora tem mais portas fechadas que abertas.
Isso resulta num convite a mais para atividades ilegais. Os portos
clandestinos mantêm atividades febris, principalmente à noite e nas
primeiras horas da manhã. Adaildes Gomes, o ’Dourado’, é um dos que
fazem da própria embarcação um veículo para atividades ilegais de
contrabando. “Aqui se atravessa de tudo”, diz ele. O ‘tudo’ significa
eletrodomésticos, comidas, peças de vestuário. Do lado boliviano também
chega gasolina, mais barata que a brasileira. “Molhou as mãos do cara e
está dentro”, diz Dourado.
“Os caras passam por todo canto”, diz o barqueiro Villemar,
experiente trabalhador de embarcações de passageiros nos rios Mamoré e
Guaporé. Um dos principais portos clandestinos entre os dois países é
conhecido como ‘Igarapé do Primeiro’, um pequeno e discreto ‘furo’ no
rio. Ali, de manhã até o meio-dia, o movimento é contínuo. Villemar
conduz os repórteres em uma lancha voadeira para observar de perto os
portos clandestinos enquanto explica o funcionamento das atividades.
O vai e vem de pequenos barcos de uma margem a outra do rio
carregando produtos contradiz até a determinação escancarada estampada
numa placa de um pequeno porto boliviano. Entre outras recomendações há a
expressa proibição de se transportar produtos ilegais. Obviamente
ninguém dá atenção à placa.
Terra sem lei
Nos dois municípios a violência e a prostituição ganham espaço. Mais
visível ainda é o problema em Guayaramerim. Apesar de pequeno, o
município tem muitas casas noturnas. Não é incomum encontrar meninas de
14 anos se prostituindo.
“Vai una cosita aí?”, pergunta o boliviano na principal praça de
Guayaramerim, enquanto centenas de motos, a maioria modelo anos 70,
ziguezagueiam ao redor da praça. A oferta de cocaína em Guayaramerin é
farta. Afinal lá é um dos corredores do narcotráfico. Mas a folha da
coca, usada para mascar, é vendida normalmente nas feiras da cidade.
Assim como o chá de coca, vendido em saquinhos, como o de erva-doce ou
erva cidreira.
Além do narcotráfico, a fronteira Brasil-Bolívia é sempre alvo de
outras ações ilegais, como o contrabando de madeira. O “campesino”
Mariano Picolomini, 72 anos, reclama que os madeireiros entram sem
permissão na comunidade indígena Graquiniana, onde vivem 30 famílias
indígenas. A comunidade fica distante apenas 14 km do centro de
Guayaramerim. “Eles entram para cortar árvores, principalmente à noite e
isso não está certo”, diz Picolomini.
Em Rondônia, o estado até busca coibir essas atividades ilegais. Mas
as ações pontuais representam apenas isso. Ações pontuais. Em junho
passado, por exemplo, uma operação desencadeada pela Secretaria de
Estado, Segurança, Defesa e Cidadania (Sesdec), abordou mais de 40
embarcações. Foram apreendidos 20 quilos de mercúrio, cinco armas de
fogo e 65 munições. Também foram recuperados três veículos - inclusive
um caminhão, numa operação feita em 12 cidades de fronteira. O mercúrio
chama a atenção a outro problema, os garimpos clandestinos.
Mas o calcanhar de Aquiles continua a ser a manutenção de uma
fiscalização contínua nessas áreas de fronteira. É um procedimento que
necessitaria de mais verbas e pessoal, artigos em falta quando se fala
de proteção à Amazônia. O problema é que boa parte da droga e armamento
pesado que entram diariamente em território brasileiro vem da Bolívia.
Isso sem falar na biopirataria. Um estudo recente feito pelo Tribunal de
Contas da União estimou em R$ 2 bilhões o prejuízo causado aos cofres
brasileiros por conta dessas ações criminosas.
Fiscalização
Percorrer os rios Mamoré e Guaporé, saindo de Guajará-Mirim até a
divisa Rondônia-Mato Grosso é entender a plena acepção da expressão
ausência do estado. São centenas de quilômetros desguarnecidos.
Um dos poucos locais onde a presença armada brasileira se faz notar é
no Forte Príncipe da Beira, no município rondoniense de Costa Marques. O
forte é uma construção da época colonial e uma tentativa do governo
português de assegurar presença no local. Atualmente é uma base do
Exército. Dez soldados são responsáveis por fiscalizar 212 km de
fronteira. “É um trabalho muito difícil”, diz o capitão Alan dos Santos
Reis, que comanda a Brigada de Fronteira no local.
“Aqui é comum se ter carros, armas e drogas descendo o rio vindo de
fazendas e indo até Porto Ustarez”, diz o presidente da Associação
Quilombola de Forte Príncipe da Beira, Elvis Pessoa, 39 anos. Ele diz
que a repressão a essas atividades depende muito do comando do pelotão.
“Tem comandante que é mais rígido e outros nem tanto”, diz.
“O rio Guaporé é um caminho aberto. Daqui se chega até Mato Grosso”,
diz o comandante Celso, que pilota embarcações pelo rio há mais de 20
anos. Uma das formas, segundo ele, é a chegada e partida de produtos em
aviões bimotores que pousam em fazendas. “De lá se vai pra qualquer
lugar”, diz.
Um dos caminhos é Porto Ustarez, na Bolivia. Lá funciona um minúsculo
porto. A movimentação é contínua. Saindo do porto há uma estrada de
terra, conhecida por Transcocaineira, por não possuir fiscalização
alguma. De lá se chega até Cochabamba e La Paz. Uma vila distante dois
quilômetros do porto é o único indício de civilização por muitos
quilômetros. “Sim, aqui se passam coisas ilegais”, confirma Leonardo
Teduro, que passa o dia transportando gente e produtos da vila até o
porto e vice-versa numa moto com bagageiro. Quando perguntado sobre que
produtos seriam esses, Leonardo troca olhares com o vendedor de
refrigerante de uma baiúca da vila. Os dois nada respondem.
Se do lado brasileiro o posto do Exército é o único sinal de uma
presença mais ostensiva do estado, no lado boliviano as tentativas são
maiores, embora tímidas. Em Remanso e Buena Vista há pequenos postos
onde jovens soldados se revezam na vigilância. Em Cafetal, local onde
Evo Morales foi preso ainda como liderança entre os cocaleros, cerca de
40 soldados atuam no posto militar. Mas são presenças mais simbólicas
que efetivas.
Entre mais de 30 pontos vulneráveis ao crime organizado na fronteira
brasileira, pelo menos cinco estão na divisa com a Bolívia, segundo
admitiu ainda em 2014 o governo brasileiro. Em 15 e 16 de maio de 2014,
representantes dos dois países se encontraram em Santa Cruz, na Bolívia,
para planejar um combate conjunto ao crime organizado na fronteira.
Dois anos depois, o problema permanece longe de chegar a um final feliz.