Uma das primeiras unidades de uso sustentável criadas no Brasil, a
Reserva Extrativista Rio Ouro Preto, em Rondônia, equilibra-se entre a
fuga de um passado de dificuldades econômicas e um futuro de
sustentabilidade real em atividades cujo desenvolvimento requer um olhar
mais atento do Estado.
Formada por 21 famílias em uma área de pouco mais de 204 mil
hectares, o equivalente a uns 204 mil campos de futebol, a reserva tem
nas mulheres um diferencial de liderança. Atualmente, Francisca Augusta
Rodrigues, 66 anos, é uma delas.
O pai foi soldado da borracha e a mãe morreu quando ela tinha nove
anos. “Meu pai carregou minha mãe por três dias, ela doente. Naquele
tempo não era como hoje, o transporte mais fácil. Não tinha barco, era
andando cinco, seis dias até Guajará-Mirim”, lembra.
Francisca e o pai ainda são da época em que seringal tinha um dono. E
os seringueiros precisavam se submeter a ele. “A gente comprava o
rancho pro ano todo. Se acabasse antes, acabou”.
Francisca Augusta Rodrigues. |
Tudo era alugado ou comprado. Do barco a caneca. Mesmo depois que o
seringal deixou de ter um dono, as vendas também eram direcionadas. Quem
comprava a borracha era o mesmo comerciante que vendia os produtos no
barco para os seringueiros. Era a famosa figura do ‘marreteiro’.
E aí surge a primeira grande vitória dos extrativistas. “Quando
passou a ser reserva a gente deixou de pagar pra marreteiro e pela
colocação. Passamos a vender pra quem quiser”, enfatiza Francisca.
Foi dessa forma que ela garantiu a sobrevivência familiar. Francisca
teve sete filhos. Remava por horas para deixar as crianças na escola.
“Hoje em dia estão estudados, moram na cidade”, diz com orgulho.
Para Francisca, essa é a maior vitória na vida. “Aqui não tinha
escola. Só sei escrever e ler meu nome. Mas quando eu tive filho, já
tinha a escola e eu fiz questão que eles tivessem o que eu não tive”.
O pesquisador da Universidade Federal de Rondônia, Arthur Moretti,
acompanha de perto o desenvolvimento da reserva. “Rio Ouro Preto surgiu
muito por contas das demandas geradas principalmente por Chico Mendes,
no Acre, em que os seringueiros, catadores de castanha e os ribeirinhos
tinham a demanda de sobreviver e cuidar daquele espaço. É preciso
entender a reserva atualmente na perspectiva da proteção das pessoas, na
perspectiva da proteção do espaço que eles cuidam”.
A lógica, segundo o pesquisador, é que os moradores da reserva
desmatam apenas o suficiente para a própria produção, como farinha,
castanha. “Há um sentido intrínseco de preservação muito interessante.
São os guardiões locais”, diz Moretti. “Eles vivem muito bem nesse
sentido. Eles têm a farinha, o feijão e o arroz que eles mesmos plantam.
Tem o peixe. Então vivem muito bem dentro dessa dinâmica de
sobrevivência, até melhor que a sobrevivência, porque não passam fome”.
Isso não significa dizer que é uma vida fácil. A floresta é afastada
do centro mais próximo. São 55 km até Guajará-Mirim, numa estrada de
terra pouco convidativa a veículos. Nos últimos meses o Instituto Chico
Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) tem minimizado essa
distância, colocando estrutura de comunicação, como telefone, apesar de
ainda ser incipiente.
Tesoureira da Associação dos Seringueiros Agroextrativistas do Baixo
Rio Ouro Preto (Asaex), a boliviana Raquel Antelo, 60 anos, ainda se
ressente de melhores condições de negociação da produção. “A gente está
sem ter pra onde vender a produção”, diz. Sem dinheiro, a cooperativa
atravessa um período turbulento de dificuldades para se manter. Isso
porque ainda hoje a presença do atravessador é uma constante. Na última
safra a castanha foi vendida a R$ 36 a lata, um valor considerado baixo
pelos extrativistas. A borracha alcançou o máximo de R$ 4 o quilo. “O
grande sonho nosso é uma fábrica para vender a castanha diretamente”,
diz ela.
Organização
De sonho e pesadelos Raquel Antelo é íntima. Aos 12 anos foi
trabalhar em casa de família. Quando casou, descobriu que o marido era
ciumento ao extremo. Num dos acessos de fúria, fraturou-lhe o nariz com
um soco. Com o atual marido, também extrativista, Raquel encontrou a paz
necessária. E descobriu que gosta da organização coletiva, algo que
ainda não conseguiu alcançar a maturidade necessária.
“Há pouca ação coletiva. Quando um precisa produzir uma grande
quantidade de farinha, eles juntam várias pessoas para fazer. Mas ainda é
muito difícil organização cooperativa. Até por conta da individualidade
geográfica. As casas ficam muitas vezes uma hora de distância uma da
outra. A mais longe distante três, quatro horas. Eles estão isolados. A
questão do coletivo, para convidar um amigo a te ajudar para fazer a
farinha ou outra atividade, você vai fazer o cara andar três horas a pé.
É uma dinâmica muito própria deles e são núcleos familiares que se
constituem”, explica Moretti.
“Outra questão são as pressões externas. Em Guajará-Mirim, as áreas
de reserva costumam ser invisíveis dentro da cidade. Todos os
planejamentos, da prefeitura ou do estado não costumam considerá-las
porque são áreas consideradas improdutivas. O produtivo será apenas de
soja, gado e madeira. E há até pressão interna de algumas figuras para
transformar isso em manejo de madeira para poder produzir gado”, analisa
o pesquisador.
Com isso, há também um esvaziamento da própria população da reserva,
porque há poucas oportunidades. Os moradores lembram de quando o projeto
de babaçu estava muito forte, produzindo sabonete, sabão, óleo e
eletricidade, houve até um afluxo de pessoas. Algumas pessoas voltaram
para a reserva para cuidar da atividade.
Mas o problema é que na Amazônia, muitos dos projetos experimentais
não ganham continuidade. E na reserva, a escola vai até o sexto ano.
Quem deseja ver o filho estudando precisa levá-lo para a cidade. Voltar é
sempre mais difícil. “É preciso ter uma estrutura para as pessoas que
querem morar aqui”, diz Marcos Silva, que produz açaí na reserva.
A Reserva Extrativista Rio Ouro Preto foi umas das quatro primeiras
unidades de uso sustentável criadas no país. Está localizada nos
municípios de Guajará-Mirim e Nova Mamoré, em Rondônia e integra o maior
bloco de área protegida do Estado. Pode-se dizer que a reserva começou a
nascer depois do I Encontro dos Seringueiros de Guajará Mirim,
realizado em fevereiro de 1989, para discutir os problemas dos
seringueiros do município e escolher delegados para o II Encontro
Nacional dos Seringueiros.
De lá para cá, a reserva já conquistou vitórias e conheceu derrotas.
Mas vem permanecendo como um marco para a construção de um futuro melhor
para as comunidades da floresta. O professor Moretti diz que a
existência da reserva é fundamental. “E tem outra questão que é a
preservação ambiental efetivamente. Porque aqui são conectadas várias
áreas indígenas e extrativistas que têm reservas muito bem preservadas e
esses rios são tributários do Mamoré e Guaporé. Esses rios precisam
dessa floresta de várzea ao seu lado, porque se as florestas que estão
nas margens forem retiradas, vai assorear o leito, que irá assorear
outros e vai ter mais problema.
Francisca Rodrigues não quer pensar muito em problemas. Para ela, o
que já foi conquistado é para ser comemorado. “Me sinto vitoriosa,
porque é a única coisa que se pode deixar pros filhos. É a terra pra
cuidar e a educação, pois é muito triste quando se precisa escrever uma
carta e nem sempre as pessoas tem paciência. Sou vitoriosa porque botei
meus filhos pra estudar, trabalhando aqui na reserva”.
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