Hernando Parará Borgiano, nascido em Lábrea, Estado do Amazonas, mas criado em Guajará-Mirim, herdou de um tio conhecido como Juca Tucair Borgiano o gosto pela mentira. Nisso era tão ou mais criativo que seu parente!
Numa
certa noite de lua cheia com roda de seresta e direito a fogueira no
meio do terreiro, enquanto os seresteiros tomavam um gole de cachaça
Cocal e reazeitavam os dedos violeiros, Hernando, desejando tornar-se o
centro das atenções, saiu-se com essa:
– Vocês sabem que sou caçador e dos bons, não é?
Os presentes pararam o que estavam fazendo para ouvir Hernando.
-
Pois bem, fui caçar num desses dias lá pra bandas do Iata e percorri
bons quilômetros dentro da mata verdejante. Até que, sentindo um
embrulho nos intestinos, deixei a espingarda e o bornal numa moita e me
afastei um pouco para fazer a minha ‘precisão’. Demorei um pouco e devo
ter ficado ‘ariado’* porque, quando fiquei em pé – afinal, eu estive
acocorado – saí no rumo contrário de onde estavam as minhas ‘traias’.
–
‘Entonce’ nem foi ‘precisão’, foi necessidade das brabas! Uma baita
diarréia, né, cumpadi Parará? - apresentou-se o padrinho do primeiro
filho de Hernando, o Saulo Rodriguez, fazendo a pequena platéia rir do
chiste.
Borgiano nem respondeu, só olhou contrafeito para o interlocutor atrevido que ousara interromper a sua fala. E continuou:
–
Como saí ‘ariado’ após o esforço concentrado, igual ao que fazem os
deputados, acabei me perdendo, andando de um lado para o outro. Até que
me descobri num varadouro. Mas, raciocinando com calma, intuí que
deveria retroceder para encontrar a arma e o bornal, e rumei à direita
do caminho e não à esquerda, um erro quase fatal, pois na primeira curva
uma onça pintada eis que se me surgiu. Um arrepio percorreu toda a
minha espinha e me vi morto, mortinho da Silva, porque não tinha uma
faca, um punhal para poder vender caro a minha vida! A desavergonhada da
onça mostrou seus incisivos. O esfíncter afrouxou novamente. Acabei me
descobrindo como um homem acovardado...
–Mas,
Hernando, numa hora dessas não tem homem que não trema! Eu mesmo me
borrei todo ! - surgiu na conversa Juca Tucair, desejando recontar outra
história com uma onça preta.
–Não
interrompa o Hernando, homem de Deus! – contrariado, William Brynner
exigiu respeito à narrativa do amigo. E complementou: -Numa hora dessas a
gente se vale de todos os santos...
–Foi
o que fiz, e pedi que São Francisco me valesse e me inspirasse. De
repente, uma luz surgiu à minha esquerda e uma voz tonitruante se fez
ouvir numa pergunta: “–Qual dos dois? São Francisco das Chagas ou São
Francisco de Assis?”. Respondi: “Numa hora dessas, os dois! E logo, pois
tenho pressa!..”
A voz respondeu: “–Sou o das Chagas. Vou lhe ajudar! Pegue o cinto e dele faça uma arma.”
A voz respondeu: “–Sou o das Chagas. Vou lhe ajudar! Pegue o cinto e dele faça uma arma.”
–Se
fosse o de Assis, que amava os bichos, eu estaria ferrado! - comentou o
humano Borgiano. -E fazendo do cinturão um açoite, o estalei na frente
da inimiga. Ela mostrou uma das patas e apresentou os dentes numa das
suas ameaças. Eu, mais que depressa, zuni o cinto na direção dela, e a
fivela surpreendeu-a bem no olho esquerdo. Ela urrou de dor! Como a
melhor defesa é o ataque, fiz outro lançamento da arma improvisada, que
foi direto no olho direito, ficando a “monstra” cega dos dois,
rodopiando com eles espraiando sangue e louca de ódio mortal contra mim,
que ela não conseguia mais enxergar. Acabou saindo do nosso teatrinho
de guerra humilhada, tropeçando e caindo a cada passada.
E continuou:
-O
problema foi o meu retorno à sede do sítio. Antes, rezei pro São
Francisco das Chagas, agradecendo-lhe. Depois, procurando, acabei
achando a espingarda e o bornal. Porém, tive que parar num igarapé e
lavar a calça e a cueca, retirando os excessos que, sem querer, pude
produzir. Mesmo assim nos fundilhos não consegui explicar a mancha
amarronzada que, sem ter sabão, não pude retirar totalmente...
Como
as atenções do grupo se transferiram para o Hernando Parará Borgiano,
os seresteiros pegaram as violas e saíram de fininho acabando com o
pequeno sarau musical...
*ariado: expressão local significando aéreo, disperso. * PAULO CORDEIRO SALDANHA: Nasceu em 1946, em Guajará–Mirim, Rondônia. É Advogado e hoteleiro. Foi Presidente de Bancos Estaduais de Rondônia e Roraima, Diretor do Banco da Amazônia e Diretor–Geral do Tribunal Regional do Trabalho da 14º Região. Cronista e Romancista. É Membro Fundador da Academia Guajaramirense de Letras-AGL e Membro Efetivo da Academia de Letras de Rondônia-ACLER.