Crônica Guajaramirense - A onça pintada e a fivela do cinto

Por Paulo Saldanha
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O Mamoré
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*Por Paulo Saldanha
Hernando Parará Borgiano, nascido em Lábrea, Estado do Amazonas, mas criado em Guajará-Mirim, herdou de um tio conhecido como Juca Tucair Borgiano o gosto pela mentira. Nisso era tão ou mais criativo que seu parente!
Numa certa noite de lua cheia com roda de seresta e direito a fogueira no meio do terreiro, enquanto os seresteiros tomavam um gole de cachaça Cocal e reazeitavam os dedos violeiros, Hernando, desejando tornar-se o centro das atenções, saiu-se com essa:
– Vocês sabem que sou caçador e dos bons, não é?
Os presentes pararam o que estavam fazendo para ouvir Hernando.
- Pois bem, fui caçar num desses dias lá pra bandas do Iata e percorri bons quilômetros dentro da mata verdejante. Até que, sentindo um embrulho nos intestinos, deixei a espingarda e o bornal numa moita e me afastei um pouco para fazer a minha ‘precisão’. Demorei um pouco e devo ter ficado ‘ariado’* porque, quando fiquei em pé – afinal, eu estive acocorado – saí no rumo contrário de onde estavam as minhas ‘traias’.
– ‘Entonce’ nem foi ‘precisão’, foi necessidade das brabas! Uma baita diarréia, né, cumpadi Parará? - apresentou-se o padrinho do primeiro filho de Hernando, o Saulo Rodriguez, fazendo a pequena platéia rir do chiste.
Borgiano nem respondeu, só olhou contrafeito para o interlocutor atrevido que ousara interromper a sua fala. E continuou:
– Como saí ‘ariado’ após o esforço concentrado, igual ao que fazem os deputados, acabei me perdendo, andando de um lado para o outro. Até que me descobri num varadouro. Mas, raciocinando com calma, intuí que deveria retroceder para encontrar a arma e o bornal, e rumei à direita do caminho e não à esquerda, um erro quase fatal, pois na primeira curva uma onça pintada eis que se me surgiu. Um arrepio percorreu toda a minha espinha e me vi morto, mortinho da Silva, porque não tinha uma faca, um punhal para poder vender caro a minha vida! A desavergonhada da onça mostrou seus incisivos. O esfíncter afrouxou novamente. Acabei me descobrindo como um homem acovardado...
–Mas, Hernando, numa hora dessas não tem homem que não trema! Eu mesmo me borrei todo ! - surgiu na conversa Juca Tucair, desejando recontar outra história com uma onça preta.
–Não interrompa o Hernando, homem de Deus! – contrariado, William Brynner exigiu respeito à narrativa do amigo. E complementou: -Numa hora dessas a gente se vale de todos os santos...
–Foi o que fiz, e pedi que São Francisco me valesse e me inspirasse. De repente, uma luz surgiu à minha esquerda e uma voz tonitruante se fez ouvir numa pergunta: “–Qual dos dois? São Francisco das Chagas ou São Francisco de Assis?”. Respondi: “Numa hora dessas, os dois! E logo, pois tenho pressa!..”

A voz respondeu: “–Sou o das Chagas. Vou lhe ajudar! Pegue o cinto e dele faça uma arma.”
–Se fosse o de Assis, que amava os bichos, eu estaria ferrado! - comentou o humano Borgiano. -E fazendo do cinturão um açoite, o estalei na frente da inimiga. Ela mostrou uma das patas e apresentou os dentes numa das suas ameaças. Eu, mais que depressa, zuni o cinto na direção dela, e a fivela surpreendeu-a bem no olho esquerdo. Ela urrou de dor! Como a melhor defesa é o ataque, fiz outro lançamento da arma improvisada, que foi direto no olho direito, ficando a “monstra” cega dos dois, rodopiando com eles espraiando sangue e louca de ódio mortal contra mim, que ela não conseguia mais enxergar. Acabou saindo do nosso teatrinho de guerra humilhada, tropeçando e caindo a cada passada.
E continuou:
-O problema foi o meu retorno à sede do sítio. Antes, rezei pro São Francisco das Chagas, agradecendo-lhe. Depois, procurando, acabei achando a espingarda e o bornal. Porém, tive que parar num igarapé e lavar a calça e a cueca, retirando os excessos que, sem querer, pude produzir. Mesmo assim nos fundilhos não consegui explicar a mancha amarronzada que, sem ter sabão, não pude retirar totalmente...
Como as atenções do grupo se transferiram para o Hernando Parará Borgiano, os seresteiros pegaram as violas e saíram de fininho acabando com o pequeno sarau musical...
*ariado: expressão local significando aéreo, disperso. 

* PAULO CORDEIRO SALDANHA: Nasceu em 1946, em Guajará–Mirim, Rondônia. É Advogado e hoteleiro. Foi Presidente de Bancos Estaduais de Rondônia e Roraima, Diretor do Banco da Amazônia e Diretor–Geral do Tribunal Regional do Trabalho da 14º Região. Cronista e Romancista. É Membro Fundador da Academia Guajaramirense de Letras-AGL e Membro Efetivo da Academia de Letras de Rondônia-ACLER.
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