A mudança não será tão grande — apenas uma frase — mas,
tratando-se de uma das principais e mais conhecidas orações do catolicismo,
qualquer alteração ganha relevância.
Em 2017, o papa Francisco já havia criticado a tradução do trecho 'não nos induzais à tentação' |
Até o primeiro domingo do Advento, que será celebrado este
ano no dia 29 de novembro, uma nova edição (revista e atualizada) do Missal
Romano, que reúne todas as orações que os padres rezam durante a missa, chegará
a todas as paróquias italianas.
Na terceira edição do livro em italiano, o Pai Nosso mudará
no trecho que, em português, é lido como "não nos deixeis cair em
tentação". Em italiano, o trecho atualmente é "non ci indurre in
tentazione", algo que poderia ser traduzido diretamente como "não nos
induzais à tentação".
A nova versão será "non abbandonarci alla
tentazione", com uma tradução direta que seria "não nos abandoneis à
tentação". Não haverá alteração nas traduções para outros idiomas.
Também será alterado o hino Glória em italiano. O trecho
"Paz na Terra aos homens de Boa Vontade" dará lugar a "Paz na
Terra aos homens amados por Deus".
As mudanças foram propostas pelo presidente da Conferência
Episcopal da Itália, o cardeal Gualtiero Bassetti, e aprovadas pelo papa
Francisco no dia 22 de maio do ano passado, durante a 72ª Assembleia Geral dos
bispos italianos.
"Deus não nos dá tentações. O papa Francisco recorda
que a oração começa com pai e um pai não arma ciladas para seus filhos",
explica dom Edmar Peron, presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a
Liturgia, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
"Nosso Deus é um Deus de misericórdia. Ele está sempre
conosco e nos estende a mão sempre que precisamos."
O papa Francisco já tinha se pronunciado a respeito da
versão em italiano do Pai Nosso em outubro de 2017. Em entrevista ao programa
Padre Nostro, transmitido pelo canal TV 2000, o pontífice admitiu que "não
nos induzais à tentação" não era uma boa tradução.
A versão brasileira não sofre com esse problema. Por aqui,
há muito é rezada como "não nos deixeis cair em tentação", muito
próximo do sentido que a nova tradução italiana pretende dar à frase.
"Sou eu quem cai em tentação; não é Deus que me joga
nela", afirmou o papa ao apresentador, o padre Marco Pozza.
Aramaico x grego
No italiano, o verbo "indurre"
("induzir") foi traduzido do latim "inducere"
("empurrar") a partir do grego "eisféro" ("conduzir
para dentro"), explica o padre Paulo Bazaglia, mestre em Exegese Bíblica
pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e coordenador do Centro Bíblico
Paulus.
"Jesus conversava em aramaico com seus discípulos, mas
os evangelhos foram escritos em grego. O verbo grego não conseguiu traduzir a
ideia presente no original aramaico. Enquanto um significa 'fazer entrar', ou
seja, dá a ideia de entrar à força, o outro tem sentido permissivo, isso é,
'deixar entrar'. O Deus de Jesus não empurra ninguém para a queda, nem passa
rasteiras ou contabiliza quantas vezes caímos para rir de nós", diz.
Segundo a tradição católica, todos os fiéis, sem exceção,
estão sujeitos a cair em tentação. Até o próprio Jesus, relatam os Evangelhos,
foi tentado pelo Diabo no deserto.
"Sim, Deus pode permitir que sejamos tentados, como
aconteceu com Jesus no deserto. Mas, nunca nos propõe o mal como bem",
afirma o padre Jesus Hortal, professor emérito do Departamento de Teologia da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
"Tentar é fazer uma prova a fim de ver o resultado. O
que pedimos, portanto, é que Deus não nos coloque à prova, nem tente as nossas
forças. Sabemos que somos fracos e que, se colocados à prova, vamos cair."
Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Teologia da PUC-SP,
o padre Gilvan Leite de Araújo acrescenta que, se Deus concedeu ao homem o
livre-arbítrio, não pode, então, privá-lo de exercer sua liberdade de escolha.
"Um pai ou uma mãe segura a mão de uma criança até que
ela aprenda a andar. Depois, dependendo da idade, orientam e corrigem, mas, ao
crescer, a pessoa deverá tomar suas próprias decisões, que podem edificá-la ou
destruí-la. Os pais usam todas as possibilidades para salvar um filho que está
em perigo, mas caberá a ele aceitar ou não", explica o teólogo.
Outras mudanças
Não é a primeira vez que uma congregação episcopal propõe
uma alteração no Missal de seu país. Em 2017, a conferência dos bispos da
França realizou um ajuste no mesmo trecho do Pai Nosso.
Desde o primeiro domingo do Advento daquele ano, que caiu no
dia 3 de dezembro, a frase "não nos submeteis à tentação" ganhou nova
tradução: "não nos deixeis cair em tentação" — a mesma utilizada na
versão brasileira.
Em 2019, os bispos da Congregação Episcopal de Portugal
optaram por tratar Deus como "Tu" e não mais como "Vós". A
nova versão, coordenada por dom Anacleto Oliveira, bispo de Viana do Castelo,
levou sete anos para ser concluída e contou com uma equipe formada por 34
especialistas.
"No Brasil, achamos mais conveniente tratar Deus como
Vós. Já outros países, como Itália, França e Espanha, usa-se o Tu. É uma
questão de adaptação ao uso de cada país", explica o exegeta e missionário
redentorista Padre José Raimundo Vidigal, responsável pela tradução da Bíblia
Sagrada, da Editora Santuário.
Todas as conferências episcopais, explica dom Edmar Peron,
têm liberdade para propor alterações nas traduções de seus missais. Mas, tão
logo traduzidos e aprovados, os textos devem ser enviados para Roma.
A Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos
Sacramentos, chefiada pelo cardeal Robert Sarah, é o órgão da Santa Sé
responsável por validar essas traduções.
Segundo os Evangelhos,
o Pai Nosso foi ensinado pelo próprio Jesus a pedido de um de seus discípulos
No Brasil, o setor da CNBB encarregado de traduzir os textos
litúrgicos é a Comissão Episcopal de Textos Litúrgicos (CETEL).
'Ofensas'
Outro trecho do Pai Nosso que costuma suscitar polêmica em
congregações evangélicas é "Perdoai as nossas ofensas". Os mais
puristas preferem "dívidas" em vez de "ofensas".
"A tradução por 'dívidas' está correta, mas a por
'ofensas' é ainda melhor. Afinal, essas 'dívidas' são morais e não
monetárias", explica o pastor Vilson Scholz, consultor da Sociedade
Bíblica do Brasil (SBB) e professor de Teologia Exegética da Universidade
Luterana Brasileira (Ulbra), de Canoas (RS).
"Muitas pessoas não imaginam que exista linguagem
metafórica na Bíblia e tendem a interpretar tudo ao pé da letra."
"Não nos deixeis cair em tentação" e "Perdoai
as nossas ofensas" são apenas dois dos sete pedidos rezados no Pai Nosso.
Os três primeiros fazem referência a Deus: "Santificado
seja o vosso nome", "Venha a nós o vosso reino" e "Seja
feita a vossa vontade".
E os quatro últimos às nossas necessidades básicas: "O
pão nosso de cada dia nos dai hoje", "Perdoai as nossas ofensas,
assim como nós perdoamos a quem nós têm ofendido", "Não nos deixeis
cair em tentação" e "Livrai-nos do mal".
Segundo os Evangelhos, o Pai Nosso foi ensinado pelo próprio
Jesus a pedido de um de seus discípulos. Há duas versões: uma, mais curta, em
Lucas (11, 2-4), e outra, mais longa, em Mateus (6, 9-13).
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