"Causos e Crônicas do Berço do Madeira e da Pérola do Mamoré": AS BOTINAS DA DISCÓRDIA ASSOMBRAM VILA MURTINHO

Por Simon Oliveira dos Santos
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O Mamoré
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Saimon Santos

Entre a caixa d’água e a Igreja de Nossa Senhora Terezinha, ficava a residência do José Ribeiro da Costa, administrador da estação ferroviária da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Após a igreja, residia o telegrafista José Gomes e, entre sua residência e o Rio Mamoré, foi instalada a caldeira que abastecia a caixa d’água que alimentava as fumarentas locomotivas inglesas, no vai e vem diário entre Porto Velho e Guajará-Mirim.

O porto ficava na mesma direção da estação ferroviária. Bem próximo foi instalada a representação da Jacob Sabbá, empresa responsável pela comercialização de toda a castanha- doPará que descia através das barcaças Vaca Diez e Mojo, dos castanhais entranhados nos vales dos Departamentos de Beni e Pando bolivianos.

Semanalmente, essas embarcações regurgitavam no porto de Vila Murtinho toneladas da Bertholletia excelsa, que os encarregados da Jacob Sabbá armazenavam na estação, onde aguardavam o embarque nos vagões das locomotivas com destino a Porto Velho; depois seguiam viagem nos porões dos navios que desciam o Rio Madeira, para serem negociadas com as casas de aviamentos das cidades de Manaus e Belém.

A residência do delegado José de Sá fora construída às margens do Mamoré, entre o porto e a escola Aluísio Ferreira. Nas suas folgas, o delegado trabalhava como sapateiro, ofício que aprendera ainda criança com seu pai no sertão de Caicó. Era um exímio artesão no conserto e fabrico de sapatos, bolsas, carteiras e cintos, cuja matéria-prima chegava em suas mãos vinda dos melhores curtumes do Nordeste.

Construíra sua oficina nos fundos da residência, defronte para o Mamoré, de onde se via o vai e vem das embarcações, o encontro das águas do Mamoré com o Beni e a bandeira do país boliviano fincada no alto de um poste de paxiúba acenando incansavelmente para a torre da Igreja de Santa Terezinha. José de Sá não tinha família, era quase um ermitão e só deixava sua residência para ir à delegacia, ou ao botequim do Manduquinha tomar uns tragos de conhaque São João da Barra.

Num final de tarde límpida em que o sol abraça furtivamente as matas das margens dos rios e lança raios multicores sobre suas águas, dando aos peixes um colorido alaranjado, já fadigado e exausto de tanto manusear pés-de-ferro, martelos, torquesas, facas, agulhas e linhas, José de Sá levantou-se para fechar a oficina, quando osblatidos de seus cães anunciaram a chegada de um visitante. O homem que se apresenta é um funcionário recém-contratado da Jacob Sabbá e traz nas mãos um par de botinas velhas, com as solas despregadas e grandes furos nas pontas e nos calcanhares. José Mansinho coloca as botinas velhas sobre o pé-de-ferro e pergunta arrogantemente ao velho sapateiro se ele tem tempo para lhe entregar seus calçados remendados ainda naquele fim de tarde.

Zé de Souza que também carregava no sangue a marca da ignorância, respondeu-lhe não menos áspero e meio afobado, “é mais fácil eu ir pro inferno andando do que lhe entregar essas porcarias remendadas ainda hoje”, mirando resoluto para o bugre parado na porta da oficina, cuja vasta cabeleira era dura e sebenta como suas escovas de engraxar sapatos.

José Mansinho retira calmamente as botinas de cima do pé-de-ferro, mira-lhes as solas despregadas e tomado por um surto repentino de raiva incontrolável, as arremessa certeiramente nos peitos do perplexo sapateiro. Não se sabe como e nem quem atacou primeiro. Em segundos os dois homens abufelados rodopiavam feitos dois jacarés-açus por cima dos apetrechos da oficina, rolavam pelo terreiro e ainda entrelaçados como duas sucuris, despencaram pelo barranco caindo como uma péla de borracha nas águas mornas do Mamoré.

A contenda continua no fundo do remanso e desliza em direção à cachoeira, quando José Mansinho num esforço descomunal se desvencilha das garras do sapateiro, retira-se arquejante de dentro do rio e sobe o barranco decidido a registrar um boletim de ocorrência contra o encharcado e endiabrado sapateiro, “ao cagar dos pintos” do dia seguinte.

A delegacia, com aspecto de casa mal-assombrada, ficava nas proximidades do posto de saúde, defronte para a ferrovia, há poucos metros da casa do delegado. Este, servidor público quase se aposentando, abria as portas do estabelecimento público muito cedo, pois naquele dia após a peleja com o bugre na barranca do rio, foi ainda mais cedo para a delegacia, pois não conseguira dormir e tinha passado a noite em claro com dores insuportáveis na região ciática.

José Mansinho também acordou cedo e após comer beiju com água açucarada, foi ao alpendre do barraco e pegou as “botinas da confusão”, ainda molhadas pelas águas do Mamoré, as colocou num bisaco e rumou para a delegacia sem imaginar que o delegado era justamente o sapateiro doido que quase lhe arrancara as tripas no fundo do rio.

O delegado estava sentado em sua velha cadeira de cipó, pitando seu cachimbo cheio de fumo de corda, enquanto observava a barcaça Vaca Diez deslizar pelas águas do Mamoré em direção ao porto, quando alguém adentra ao estabelecimento o retirando daquele leve torpor que se encontrava, provocado pela nicotina e pela paisagem mansa do rio.

O espanto e a incredulidade de ambos emudeceu e fez saltar até os pregos das tábuas das paredes da delegacia, que foram caindo uma a uma, enquanto o telhado levantava voo e plainava em direção à calha do Rio Madeira, se espatifando no pedral logo abaixo da cachoeira. Os homens, mais uma vez frente a frente, no meio do tempo, rodeados por borboletas-amarelas, que nessa época do ano infestavam as barrancas do rio sorvendo o néctar dos floridos aguapés, se atracaram mais uma vez, agora com muito mais violência e disposição quase canina.

Envoltos numa guerra insana do fim do mundo, os dois homens já estropiados, dilacerados pelo ódio e com as vestes em frangalhos, rodopiaram pelo pátio da delegacia, passaram por cima de um tirirical, por um imenso formigueiro de saúvas e caíram mais uma vez nas águas do Mamoré, provocando uma imensa pororoca que balançou as embarcações atracadas no porto, afundando as velhas canoas dos ribeirinhos e pescadores.

Não se teve mais notícias de ambos. Os mais antigos contam que morreram abraçados no fundo do rio e foram engolidos pela sucuri gigante que morava nos arredores do porto.

No local onde era a delegacia, ficou de pé apenas a cela do “Trem das Almas”, a cadeira de cipó quase intacta, poucos apetrechos do delegado e sobre a mesa o cachimbo ainda fumegando ao lado das velhas botinas com suas solas despregadas e grandes furos nas pontas e nos calcanhares.

Autor: Simon O. dos Santos – Causo extraído do livro “ Causos e Crônicas do Berço do Madeira”.

EM BREVE INAUGURAÇÃO!

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