Saimon Santos |
O empreendedor do ramo do comércio e criador de gado nos arredores de Vila Murtinho, encomendou em São Paulo o veículo motorizado considerado o mais desejado pelos moradores que acompanhavam o declínio do ciclo da borracha e a inevitável desativação da Estrada de Ferro Madeira Mamoré.
Preparada para enfrentar todo tipo de terreno, a Rural Willys, 4x4, bicolor, com uma faixa azul metálica separando o teto e as partes inferiores brancas fosco, chegou em Vila Murtinho em um vagão exclusivo da locomotiva, no final de 1966. Tornou-se o assunto mais comentado durante dias, nos bares, nas repartições públicas, nas residências e em todo seringal dos Clímaco.
Aquele veículo suntuoso, capaz de acomodar até seis pessoas e suas respectivas bagagens, representava a modernidade e o futuro dando as boas-vindas à população de Vila Murtinho. Seus faróis potentes, como se fossem dois imensos vagalumes encerraram impiedosamente o modo de vida baseado na extração do látex no Berço do Madeira.
Na mesma época, já se escutava em Vila Murtinho, os motores dos tratores do 5º Batalhão de Engenharia e Construção, roncando ferozmente, arrancando pelas raízes as seringueiras e castanheiras centenárias, deixando um rastro de destruição na floresta, com a mesma força impiedosa da cachoeira de Vila Murtinho, que arrasta os imensos troncos de árvores que descem das encostas do Beni e navegam celeremente pelas águas do Madeira.
Um mutirão, liderado pelo proprietário da Rural, tratou de interligar Vila Murtinho à recém aberta rodovia. Com machados, foices e facões, o grupo de homens, seguindo o traçado de uma antiga estrada de seringa, da “Colocação do Ambrósio”, romperam orgulhosos, após vários dias de trabalho árduo, na promissora “Vila”.
Os tratores do 5º Batalhão fizeram a abertura final do ramal, por onde trafegou a Rural Willys, com destino à Colônia Agrícola do IATA e à cidade de Guajará-Mirim, transportando passageiros e mercadorias, para deleite do vaidoso proprietário.
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Era início do mês de maio, quando a jovem Jurema Facundes, grávida de trigêmeos, sentiu as primeiras dores do parto. A parteira mais próxima, residia na Segunda Linha do IATA, e a locomotiva com destino a Guajará-Mirim, onde havia atendimento médico, chegaria em Vila Murtinho, somente por volta das doze horas do dia seguinte.
Tempo muito longo diante das complicações da gestante que requeria cuidados urgentes, tanto ela, quanto os bebês. O esposo de Jurema, decidiu então pedir socorro ao proprietário da Rural Willys, única alternativa para chegar ao hospital de Guajará-Mirim em pouco tempo.
No alpendre da residência onde a Rural reluzia imponente, o esposo de Jurema relatou aflito o caso ao proprietário. Este sem demonstrar compaixão diante da situação angustiante daquela jovem família, afirmou que não trafegava no seu veículo durante a noite.
Mesmo diante dos insistentes pedidos de ajuda do jovem homem, o proprietário não sensibilizado voltou a dormir, deixando-o inconsolável diante de sua porta e molhado pela fina chuva que começava a cair no Berço do Madeira.
No outro dia, quatro covas foram abertas no cemitério de Vila Murtinho. Após o enterro, o jovem desvairado seguiu andando pelo ramal que tinha ajudado a construir, onde a Rural Willys trafegava imponente e orgulhosa, para deleite do proprietário.
Simon O. dos Santos - Escritor do Berço do Madeira